Tudo começou com uma necessidade gigantesca de silêncio. Mesmo sem entender o porquê, o silêncio me pareceu a melhor saída pra que eu pudesse processar a gama de sensações e impressões que chegavam até mim. Preciso dizer que as impressões sempre nortearam minha vida; sempre foram, equivocadas ou não, determinantes em minhas escolhas. Mas foi aqui, a partir deste episódio, que elas ganharam um significado completamente diferente, que só se fará entender depois que eu explicar minuciosamente o que me ocorreu pra que eu decidisse me calar por 80 minutos.
Primeiro
de 5 dias de um festival de dança pelo qual esperei ansiosamente por
um mês. Antes de tudo, há que se explicar as circunstâncias nas
quais me encontro pois, como sempre acontece quando se trata de
mim, as circunstâncias são espelho no qual apareço refletida. Eu
amo dança. Na verdade, o que eu amo mesmo é o movimento e tudo o
que tem a ver com ele. É a única coisa que consegue me absorver
por completo por um longo período de tempo. Não me contentando com
a observação, eu também escolhi o movimento para ser o meu objeto
de trabalho. Se alguém me questiona como é meu trabalho eu respondo
simplesmente 'eu me movimento'. Pode parecer pouco, mas pra mim é
suficiente. Foi essa a maneira mais simples que encontrei para me
expressar com exatidão, pois sua essência é exatamente o oposto do
exato. É através do movimento que sinto e posso expressar toda a
impermanência que sou eu e que é minha percepção de mundo. Por
isso a necessidade de explicar as circunstâncias atuais. Porque me
machuquei fisicamente e estou impossibilitada de me movimentar
livremente desde o início do ano. E porque a ciência disso tem tido
enorme influência em tudo o que sinto ultimamente.
Então agora, com
tudo explicado, volto ao princípio da história: estava ali, no
primeiro de 5 dias de um festival de dança pelo qual esperei
ansiosamente por um mês, sabendo que minha única condição ali e
fora dali era a de observadora. Racionalmente isso já havia sido
aceito por mim, mas na prática não é tão simples assim. Foi no
início, logo nos primeiros minutos de espetáculo, com as primeiras
notas musicais e com os primeiros desenhos formados pelos corpos
esculturais, que uma emoção sem igual, mas já conhecida por mim,
fez com que cada pelo do meu corpo se eriçasse. Então, me vi ali,
sentada entre estranhos, profundamente comovida por dentro e
agradecendo intimamente por estar coberta da cabeça aos pés, o que
evitou que a comoção externalizada por meus pelos fosse percebida
por quem quer que fosse. De repente, não sentia vontade de mostrar
nada, de repente aquele momento tornou-se algo só meu. O silêncio
me pareceu a forma mais adequada de honestidade. E naquele instante
minha alma clamava por honestidade, toda a fome que existia em
mim era de honestidade. E assim o fiz. Me calei, de voz e de cara.
Os próximos 80 minutos não teriam sido o que foram se tivesse
optado por outro caminho. Me sentia só, profundamente só, mas tão
acompanhada por mim mesma que a solidão era paz, era abastecimento e
plenitude. Foram 80 minutos de plenitude. Que só cessaram com o som
dos aplausos ao final. Como me incomodaram os aplausos. Não pelo
fato de eu ser avessa a manifestações efusivas de aprovação,
apesar de esse ser um motivo constante de irritação pra mim. Não,
dessa vez a coisa era diferente e ia além de uma simples birra por
parte de minha pessoa retraída. Esses aplausos eram apenas barulho.
Barulhentos, vazios, automáticos, maquinais. Furtando sem a menor
cerimônia toda a profundidade da qual prescindia o momento. Senti-me
de novo sozinha. Mas dessa vez, oca. Adicionado a isso, senti vergonha; vergonha de mim mesma ao dar-me
conta de quantas vezes fiz parte dos que aplaudem, mesmo sem gostar
de aplaudir. Dos que gritam por preguiça de sentir. Vergonha por
todos os momentos em que vivi fora de mim. E como vivi pra fora, meu
Deus. Houveram tempos em que só o pra fora me servia de referência.
E é quando a gente vive assim, pra fora, que nossa alma grita lá de
dentro, soltando ruídos de emoção, comoção pura, e a gente
abafa. Abafa aplaudindo. É uma necessidade de expressão constante.
Expressão pra fora. Redundância mesmo. Porque não é porque é
'ex' que tem, necessariamente, que ser pra fora. Pode-se expressar
pra dentro sem que seja obrigatório diminuir a expressão a uma
simples impressão. Foi ali naquele momento de sons vazios que me
dei conta de que o mundo tá cheio de impressão e carente de
expressão. Expressão pra dentro. A expressão tá perdida por aí,
no meio de tudo que é rápido, raso e cambiável. Perdida nos
abismos que criamos entre nós e nós mesmos. E aí a gente despenca
pro lado mais fácil. A histeria coletiva. Sem eco, só lampejo.
Por
isso meu silêncio.
Os meus 80 minutos de silêncio. 80 minutos pra
que eu pudesse me agarrar a mim. 80 minutos pra que eu me lembrasse da luz que é ter-se por perto.